quinta-feira, 17 de outubro de 2013

          Jamais haverá um herói que exista sem vilão... e de todas as vilanias talvez a pior seja a de viver na solidão.
          Sou um pássaro com raízes ou uma árvore alada?
          Que quimera atroz pode ser vista por tantas distancias
          Ainda assim, tão isolada?




CAPITULO VI
UM LAR, CHAMADO, PERIGO
Eu via claramente o desfiladeiro e todos os arredores eram interessantes e desafiadores, eu não queria nenhum, queria atrair o mundo ao meu mundo, agora tão orgânico e efêmero. Que injusto me senti ao desejar que tudo então viesse a mim. O que eu teria a oferecer a essa gente? O que eu teria? Eu jamais seria o mesmo e por tanto mais, não me reconheceria.
Tudo o que queria era construir um templo com minhas próprias mãos, usando as cinzas úmidas das esperanças infantis que cuidei como se fossem relíquias sagradas. Quis encontrar a Arte ardente de um Deus que eu não sou, que eu não conheço e que não me reconheceria.
O que eu sinto nada move, o que sinto me paralisa e consome. Mas para onde vou? Onde vai um homem cuja maldição o prende ao lugar que o amaldiçoou?
Tantos espasmos internos eram as palavras, bem ou mal, escritas em livro que jamais foi aberto, uma folha em branco que se queimou, cheia das ilustrações vagas de destinos imaginados, testemunhados pelas pedras que permaneceriam imóveis onde sempre estarão. Era Prometeu acorrentado empurrando uma pedra que permanecerá fixa no ponto onde o poder relegou. A única saída visível seria a fusão com a águia que beliscava seu fígado, sempre a regenerar-se. A que Deus deveria pedir o dom de tal fusão!? A quem orar nas horas em que o bem e o mal não fazem sentido? Um novo panteão deveria ser criado, ou relembrado por aquele que negou seu passado para encontrar um novo passado atávico, arquetípico!

O som de minhas palavras precisava ser ouvido... por quem? Eu não sabia. Não havia como saber... anoiteceu e nada foi dito. Mas havia luz, luz demais para apenas uma lua, eu não poderia me esconder na escuridão como antes, eu seria percebido e repetiria aquele ciclo irritante... mente... conhecido... eu estava certo, no céu haviam nove luas e eu não saberia mais voltar para casa.
Sem nada dizer, então, dei um passo rumo ao precipício! Mas eu não caí... o que exatamente aconteceu eu mais tarde saberia, naquele momento apenas senti terríveis asas de metal saindo de minhas costas nuas. Me suspendiam no ar insosso, eu me sabia, não era Ícaro, mas Dédallus errante sobre a luz de tantos luares brilhantes, como um sol ao meio dia, sem calor, sem fibras, apenas engrenagens que precisavam ser constantemente abastecidas.
Um novo lar surgia para mim, como num chamado por detrás de rochas feitas de brumas, era um ruído fantasmagórico vazando escorreito. Aproveitei minha translúcida presença e atravessei esses rochedos que não me levaram à Avalon, mas a uma cortina de fogo, um lar chamado Perigo que me aconchegaria em um insólito peito reluzente e articulado.
Ali eu planava na busca de um pouso que me permitisse voltar ao cume daquele pântano que deveria ebulir e fossilizar as cinzas, os sonhos, a pele antiga do dragão e os suspiros de uma garganta que não mais se fecharia.
Quem me visse diria que eu carregava os céus com minhas asas, e esse peso fatalmente derrubaria meu corpo cigano que não tinha jóias. Mas eu me sabia, ouvindo o zunido mântrico do vento que secava meus olhos, eu me sabia o mesmo cigano cuja dança e canto não são nada, senão desejo de viver.
Eu viveria a vida que me fosse entregue, eu viveria, mas não mais me apegaria, fosse a pele, o aço, a lança ou o arco. Não me entregaria ao desejo, nem o dominaria. Não lutaria mais com o tempo, mas inerte  não ficaria. A Morte seria a única constante a cantar com a Vida um estranho dueto que com nada deste mundo se pareceria.
      Meu coração voava comigo, suas asas índigo e vermelhas raramente seriam vistas por entre as folhagens que eu semearia por onde minha voz profunda fincaria raízes de esperanças infanto-senis. Nenhum espelho me refletiria, e o sol ao despontar nesse novo horizonte trazia uma escuridão nova antes desse desconhecido alvorecer. Onde pousar? Onde eu pousaria?

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